Indígena vítima de estupro em delegacia do Amazonas quebra silêncio: "Trauma para sempre"

Manaus/AM - A indígena Kokama de 29 anos, que denunciou ter sido estuprada por policiais militares e um guarda municipal em uma delegacia no interior do Amazonas, falou pela primeira vez à imprensa. Cumprindo pena em liberdade, a vítima relatou os traumas físicos e psicológicos sofridos durante nove meses de cárcere e abusos. A denúncia, que veio à tona nas últimas semanas, resultou na prisão de quatro agentes de segurança e na abertura de investigações internas.
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O pesadelo da indígena começou em novembro de 2022, quando foi presa na delegacia de Santo Antônio do Içá. Sem uma cela feminina, ela foi colocada em um espaço com homens, juntamente com seu filho, que tinha apenas 21 dias de vida. A vítima conta que os abusos sexuais, praticados por policiais e o guarda municipal, iniciaram na primeira noite e se tornaram uma rotina de terror. "O medo me persegue diariamente. Vivo um trauma que sempre vou carregar", desabafou a indígena.
"Eu tinha acabado de amamentar. Ele abriu a porta da cela, estava bêbado, se aproximou de mim e disse que eu estava sob sua guarda e que tinha que colaborar com ele. Ele me deitou ao seu lado, perto de onde meu filho estava. Os outros presos não disseram nada, pois tinham medo de serem espancados, como sempre acontecia na delegacia de Santo Antônio do Içá", contou.
A situação se agravou nos fins de semana, quando a indígena era frequentemente violentada. Ela relatou que chegou a cogitar o suicídio, sem saber como escapar da violência e com medo do que os agressores poderiam fazer contra sua família. O único apoio que tinha era de sua mãe, mas a sensação de impotência era esmagadora. A vítima permaneceu com o filho na cela por dois meses, até que o bebê, após contrair uma gripe, foi levado para os cuidados da avó.
Segundo a mulher, durante uma visita à delegacia, um juiz foi informado sobre a situação da indígena, mas alegou que nada poderia fazer por ela, pois o processo era da comarca de Manaus. “Teve um juiz que fez uma visita lá. Ele estava fazendo tipo um mutirão com os presos das comarcas da região. Os presos disseram para mim, eu pedi permissão para falar com ele, e ele disse que não poderia fazer nada por mim. Que eu não era presa dele, da comarca dali. Eu era presa da Justiça de Manaus. Foram essas palavras. É revoltante tudo que aconteceu comigo naquele local. Eu ter ficado ali esquecida, exposta a tudo que passei durante nove meses”, relatou. A Corregedoria-Geral de Justiça do Amazonas informou que abriu um procedimento para apurar a conduta de magistrados e servidores.
A denúncia formal só foi feita em agosto de 2023, após a indígena ser transferida para a Unidade Prisional Feminina de Manaus. A repercussão do caso levou à prisão de três policiais e um guarda municipal no sábado (26), e de um quarto policial no dia seguinte. Eles são investigados por estupro de vulnerável, estupro qualificado e tortura. A Polícia Militar abriu um inquérito policial militar, que está em fase final de investigação.
Em tratamento psicológico e psiquiátrico para lidar com síndrome do pânico e outros traumas, a indígena questiona a atuação dos policiais. "Sei que estava respondendo pelo crime, estou respondendo pelo crime que cometi, mas isso não dava direito para tudo que aconteceu comigo daquela forma. Eu estava sob a guarda deles, e o dever deles era cuidar e proteger. Eles fizeram exatamente o contrário", afirmou.
Apesar das feridas, a indígena olha para o futuro com esperança. Em regime de semiliberdade e em um abrigo sigiloso, ela busca a liberdade para reencontrar a família, trabalhar e "ter uma vida estabilizada". "Hoje me sinto muito satisfeita de estar livre daquele lugar. Nem tenho palavras para descrever a sensação que estou sentindo. Parece que nem acredito ainda que estou fora daquele presídio. Quero respirar e sentir essa liberdade, encontrar meus filhos, minha família. Por enquanto é isso".
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